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A temporada que transforma a Valetta em conto de fadas

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Há cidades que parecem ganhar nova alma quando o Natal se aproxima — e há Valetta, que simplesmente revela a sua. As ruas estreitas, talhadas em pedra dourada, acolhem o visitante com uma aura que só poderia surgir de séculos de história, fé e resistência. Em dezembro, a capital maltesa não se limita a celebrar a temporada: ela a incorpora ao seu próprio enredo, deixando que o passado ilumine o presente e que a festa encontre eco em cada fachada barroca, em cada praça e em cada miradouro que se abre para o mar.

A temporada que transforma a Valetta em conto de fadas

Um cenário nascido do cerco e da coragem

A origem de Valletta carrega a força de um renascimento. Após o Grande Cerco de 1565, quando os Cavaleiros de São João resistiram ao avanço otomano, surgiu a necessidade de erguer uma cidade fortificada que representasse proteção e triunfo. O engenheiro militar Francesco Laparelli iniciou os trabalhos em 1566, com apoio do Papa Pio V e do rei Filipe II. Ele projetou uma urbe funcional, defensiva e, sem saber, destinada a tornar-se um dos centros urbanos mais cativantes do Mediterrâneo.

A homenagem ao líder da resistência, o grão-mestre Jean Parisot de la Valette, batizou a nova capital. Ela hoje se mantém como um raro exemplo de planejamento renascentista preservado.

O que Laparelli talvez não previsse é que a cidade que nasceu do rigor militar se tornaria, séculos depois, um dos cenários mais poéticos para viver o Natal.

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Luzes, aromas e atmosfera de dezembro

Quando dezembro chega, Valetta muda de cadência. Republic Street e Merchant Street são tomadas por luzes suspensas que dançam com o vento, guirlandas que contornam sacadas antigas e instalações que revelam formas e brilhos nesta época tão fotografada. O aroma doce das roscas qagħaq tal-għasel, recém-saídas dos fornos, contrasta com o perfume quente da imbuljuta tal-qastan, bebida de castanha e chocolate que conforta quem caminha entre as ruelas frias.

Pequenos mercados surgem em praças e becos, oferecendo artesanato maltês, doces tradicionais e a alegria simples de uma cidade que se sabe acolhedora. De Valetta, muitos seguem até Rabat para explorar o Natalis Notabilis. Mas basta permanecer na capital para perceber que ali o Natal se desdobra em cada detalhe. Da vitrine que exibe um presépio artesanal à música que ecoa discretamente de uma igreja com séculos de fé.

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Fairyland – Santa’s City: a entrada para um dezembro encantado

A poucos passos do City Gate, a monumental Triton Fountain, concebida na década de 1950 pelo escultor Vincent Apap e por Victor Anastasi, marca o início da jornada. No seu entorno, instala-se o Fairyland – Santa’s City, um parque festivo que parece costurar a infância do visitante ao espírito da cidade. A roda-gigante transforma o céu em mirante; o carrossel gira entre risos infantis; e a casinha do Papai Noel se mistura aos aromas dos food trucks. Tudo pulsa na fronteira entre o passado monumental e o presente vibrante.

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O coração barroco que celebra música e tradição

Dentro das muralhas, dezembro traz música. O Teatro Manoel, um dos mais antigos da Europa em atividade, acolhe recitais e apresentações especiais que parecem dialogar com as paredes centenárias. Igrejas históricas recebem corais e apresentações com órgão, enquanto a St. John’s Co-Cathedral — iniciada em 1572, concluída por volta de 1577 e decorada por Mattia Preti — guarda sua atmosfera única, reforçada pelo piso formado por cerca de 400 túmulos de cavaleiros e pela obra maior da cidade: The Beheading of Saint John the Baptist, a única pintura assinada por Caravaggio.

Na noite da Missa do Galo, a espiritualidade toma conta das ruas. Presépios, velas e procissões completam o mosaico de tradições que, ano após ano, reafirmam a identidade da capital.

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Upper Barrakka Gardens: o miradouro que domina o passado e ilumina o presente

Os Upper Barrakka Gardens oferecem um dos momentos mais marcantes de qualquer viagem a Valletta — e no Natal, essa experiência ganha contornos ainda mais cinematográficos. Localizados no nível superior do Saints Peter and Paul Bastion, parte das fortificações do século XVI, os jardins se abrem como um terraço suspenso sobre o Mediterrâneo.

Os arcos que moldam o terraço foram construídos em 1661 pelo cavaleiro italiano Fra Flaminio Balbiani. Eles serviam, originalmente, como área de recreação reservada à “língua italiana” da Ordem de São João. Após a Revolta dos Sacerdotes, em 1775, o teto das arcadas foi removido. E, depois da ocupação francesa, em 1800, os jardins foram abertos ao público. Desde então, tornaram-se um dos miradouros mais emblemáticos da cidade — e não é difícil entender por quê.

Do terraço, descortina-se o Grand Harbour, um dos portos naturais mais impressionantes do Mediterrâneo. Ele é ladeado pelas históricas Three Cities: Birgu (Vittoriosa), Senglea (Isla) e Cospicua (Bormla). Em dezembro, as luzes que brotam de cada cidade refletem no mar e compõem uma paisagem que parece mesclar a rigidez das muralhas à delicadeza da festa. É um cenário que resume Valletta: sólida, luminosa e profundamente humana.

Caminhos que contam histórias

A narrativa urbana continua por Merchants Street, traçada a partir de 1566 e que até hoje concentra comércio, cafés e movimento constante. No coração da rua está o Is-Suq tal-Belt, o mercado coberto inaugurado no século XIX e restaurado em 2018 como food hall, onde sabores contemporâneos convivem com tradições que atravessam gerações.

Daqui, o visitante pode seguir para a discreta e histórica Church of Our Lady of Victory. É a primeira igreja concluída da capital, erguida em 1566 por ordem do próprio Jean Parisot de la Valette. Sua presença discreta marca o início literal e simbólico do que Valletta se tornaria.

Poucos passos adiante, a monumental Auberge de Castille, originalmente projetada por Girolamo Cassar e reconstruída em estilo barroco por Andrea Belli, revela a grandiosidade arquitetônica que hoje abriga o gabinete do Primeiro-Ministro.

No lado leste da cidade, abre-se o Grandmaster’s Palace, residência oficial e centro administrativo da Ordem de São João por séculos. Estão preservadas as Salas de Estado e a Palace Armoury — testemunhos de um passado político e militar que moldou a ilha.

E, em uma rua silenciosa, a Casa Rocca Piccola, criada no século XVI por Don Pietro La Rocca, apresenta suas coleções privadas, seus móveis preservados e os abrigos subterrâneos usados durante a Segunda Guerra. Ela oferece ao visitante uma visão íntima da vida aristocrática maltesa.

No extremo da península, o Fort St. Elmo, ampliado pela Ordem entre 1552 e a década de 1570 e crucial no Grande Cerco de 1565, domina o encontro entre cidade e mar. Hoje restaurado e sede do National War Museum, o forte resume o espírito resiliente da capital.

Uma cidade que renasce a cada dezembro

Valetta é uma cidade que entende a própria história — e sabe celebrá-la. No Natal, essa consciência se manifesta em cada rua iluminada, em cada presépio artesanal, em cada mirante que se abre para o mar. A capital maltesa não oferece apenas festas: oferece um sentido de pertencimento, como se o visitante encontrasse ali um fragmento de sua própria memória natalina.

Ao final do dia, quando as luzes se refletem nas muralhas e os sons da cidade se suavizam, Valletta mostra por que encanta famílias, inspira viajantes e conquista quem busca um destino que una beleza, profundidade e atmosfera. No coração do Mediterrâneo, ela segue sendo um lugar onde o tempo se curva diante da magia — especialmente em dezembro.

Reportagem e fotos: Mary de Aquino
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